Início

Avós Atípicos: A dor não diagnosticada de uma geração inteira

Avós Atípicos: A dor não diagnosticada de uma geração inteira

Nunca se falou tanto em TDAH e autismo. E para quem olha de fora, pode até parecer uma epidemia recente. Aí começam os palpites: é culpa da vacina, dos hormônios, da poluição, etc. Mas será que é isso mesmo?

Publicado em

26 de julho de 2025

• Revisado por

Formado na Faculdade de Medicina de Olinda em 2023.2, pós-graduando em Saúde Integrativa pela PUC-RS + Psiquiatria pela Cenbrap.

cbd para idosos sorrindo

Ou será que estamos apenas enxergando o que sempre esteve aí, camuflado por décadas de negligência e silêncio? Como se fosse mais fácil inventar culpados externos do que reconhecer uma verdade incômoda: essas condições sempre existiram.

A diferença é que agora têm nome, têm critério, têm espaço no mapa da saúde mental

E isso, para quem viveu décadas à margem, parece uma explosão — mas é só o que deveria ter acontecido desde o início: visibilidade. Só que a verdade não está no “boom” de diagnósticos — está no silêncio que veio antes. Durante décadas, esses mesmos quadros passaram despercebidos, confundidos com desobediência, possessão ou fraqueza moral. Onde hoje vemos critérios, antes só havia castigo.

Durante boa parte do século XX, o sofrimento psíquico não tinha nome — tinha punição. O menino que não falava era “retardado”. O que agitava demais era “endemoniado”. A menina que se isolava era “maluca”. Crianças eram amarradas para que os pais pudessem ir trabalhar. Trancadas em casa para não se jogarem na rua. E mesmo assim, muitas vezes morriam: afogadas em rios porque “não mediram o perigo”, pulando de árvores por impulso, atropeladas porque ninguém entendeu a urgência que as movia.

TDAH? Nem se sonhava.

Não havia Ritalina, não havia escala diagnóstica — havia corrente.

Autismo?

Até o DSM-III de 1980, o termo usado ainda era “psicose infantil”. No CID-9, que vigorou até 1975, sequer existia uma classificação clara. Foi só a partir de 1987, com o DSM-III-R, que o autismo começou a ser descrito de forma mais próxima ao que chamamos hoje de transtorno do
espectro. Até então, o que hoje entendemos como espectro era um território mal delimitado, centrado em quadros considerados “graves” e com severo comprometimento funcional — excluindo completamente perfis verbais, inteligentes ou com alguma autonomia.

O TDAH, por sua vez, entrou nos manuais apenas nos anos 1990, inicialmente como “transtorno do déficit de atenção com hiperatividade”, restrito à infância. Mulheres, adultos e os casos predominantemente desatentos seguiram invisíveis por décadas. O reconhecimento dessas
nuances só se consolidou neste século, com os avanços em neuroimagem, genética, estudos longitudinais e, sobretudo, os relatos de quem vive o transtorno por dentro.

Sempre que atendo crianças e consigo aprofundar a conversa com os pais, invariavelmente chegamos no mesmo ponto: “Meu pai também era assim”, dizem. “Meu avô não gostava de barulho, tinha mania de fazer tudo igual, se irritava por qualquer coisa fora do planejado. Minha avó era quieta demais, vivia no canto dela, não se enturmava com ninguém.” E aí vem o impasse: se era comum na família, então não podia ser doença. Mas é exatamente esse o ponto.

O TDAH e o autismo não são invenções modernas — são condições antigas, mascaradas por décadas de silêncio

O avô que não aprendia na escola não era “burro”, tinha dificuldade de aprendizado. A avó que vivia isolada no sítio não era “bicho do mato”,
era sensível a estímulos. Só que naquela época, não havia escuta — havia adaptação forçada. O diagnóstico de hoje, para muitos pais, é uma lente que reorganiza a árvore genealógica. Mas essa lente também assusta, porque reescreve memórias que já estavam mal encaixadas — mas pelo menos estavam quietas.

A vida para nós, indivíduos atípicos, nunca foi fácil

O diagnóstico não resolve tudo — mas dá nome, dá contorno, dá pertencimento. E com isso, muda também o olhar que lançamos sobre o passado e o que projetamos para o futuro. Receber esse nome aos 25, 35 ou 45 anos pode ser transformador. Mas imagine o impacto disso para os seus avós. Avós que não conseguiram seguir os estudos porque simplesmente não conseguiam acompanhar.

Que não se fixaram em empregos porque a desatenção ou o excesso de rigidez atrapalhavam. Que ralaram a vida inteira para garantir a você o que eles nunca tiveram: uma chance.

Talvez sua infância tenha sido menos dura que a dos seus pais — e, com certeza, ainda menos que a dos seus avós. E você, por fim, conseguiu proporcionar aquilo que os seus ancestrais não puderam oferecer. Muitas vezes, nem você teve acesso a esse cuidado — mas conquistou para o seu filho. Ele teve o diagnóstico ainda na infância ou adolescência, iniciou as terapias e os tratamentos adequados, e assim teve a chance real de se tornar um adulto mais funcional.

Para que a vida seja menos dura do que foi para você. Do que foi para seus pais. Do que foi para seus avós

Então, meu caro neurodivergente, por mais duro que seja o seu caminho — e ele é — saiba que você está vivendo na melhor era da saúde mental

Ainda há preconceito, ainda há falhas no sistema, mas também há algo que nunca existiu antes: conhecimento. Existe ciência, existe nome, existe diagnóstico. E, aos poucos, existe também pertencimento. Não é perfeito. Mas é algo. É muito mais do que seus avós tiveram.

Porque, para eles, não havia grupo, nem manual, nem CID, nem DSM. Havia silêncio. Havia castigo. A conversa repetitiva que hoje incomoda — para eles era motivo de piada ou isolamento. O gosto pela rotina, o apego ao mesmo prato, ao mesmo caminho, ao mesmo assunto, ao mesmo hobby… tudo isso, que hoje entendemos como traço, naquela época era tratado como manha, esquisitice, teimosia. E a dor que vinha disso? Ninguém nomeava.

Apenas se acumulava. A verdade é que nem você, com todo seu esforço, consegue imaginar o peso de ser atípico numa época em que ser diferente era quase sinônimo de ser inválido.

Então, da próxima vez que seus avós insistirem no mesmo assunto, no mesmo prato, no mesmo caminho, antes de suspirar de impaciência, respire com compaixão

Porque aquilo que hoje te irrita pode ter sido, por décadas, o único jeito que eles encontraram de não se perder. Os comportamentos que parecem teimosia ou obsessão talvez sejam, na verdade, cicatrizes de mentes que sobreviveram sem nome, sem diagnóstico, sem acolhimento. E se hoje você tem a chance de entender, que isso não sirva apenas para rotular — mas para amar melhor. Vai lá. Puxa conversa. Olha nos olhos. Diz que entende. E, se puder, diz que ama. Porque nenhum diagnóstico vale mais do que isso. E nenhum avô, nenhuma avó, vive para sempre.

O Portal Cannabis & Saúde conta com colunistas especializados, que produzem um conteúdo sério e com rigor científico em relação à Cannabis. Todas as colunas e informações apresentadas nelas são responsabilidade dos próprios colunistas. Da mesma forma, a propriedade intelectual dos textos é de seus autores. 

Confira a trajetória do Dr. Gabriel Rodrigues da Costa: transformando vidas com a Cannabis medicinal

Compartilhe:

Formado na Faculdade de Medicina de Olinda em 2023.2, pós-graduando em Saúde Integrativa pela PUC-RS + Psiquiatria pela Cenbrap.

O Cannabis& Saúde é um portal de jornalismo, que fornece conteúdos sobre Cannabis para uso medicinal, e, preza pelo cumprimento legal de todas as suas obrigações, em especial a previsão Constitucional Federal de 1988, dos seguintes artigos. Artigo 220, que estabelece que a liberdade de expressão, criação, informação e manifestação do pensamento não pode ser restringida, desde que respeitados os demais dispositivos da Constituição.
Os artigos seguintes, até o 224, tratam de temas como a liberdade de imprensa, a censura, a propriedade de empresas jornalísticas e a livre concorrência.

Agende agora uma consulta com um médico prescritor de Cannabis medicinal

Consultas a partir de R$ 200,00

Agende agora uma consulta com um médico prescritor de Cannabis medicinal

Consultas a partir de R$ 200,00

Posts relacionados

Colunas em destaque

Inscreva-se para não perder nenhuma atualização do portal Cannabis e Saúde

Posts relacionados

Agende agora uma consulta com um médico prescritor de Cannabis medicinal

Consultas a partir de R$ 200,00

Você também pode gostar destes posts: