O tratamento com Cannabis no Brasil é permitido, porém é imprescindível o acompanhamento médico. Com esta realidade, ampliar o conhecimento médico, informar e permitir que mais profissionais contem com este arsenal terapêutico também é um dos propósitos do portal Cannabis & Saúde. Por isso, na noite de ontem realizamo o workshop “Potencial terapêutico da Cannabis na Ginecologia” para médicos.
Em uma exposição clara e didática, a Dra. Beatriz Jacob percorreu do passado milenar da Cannabis às fronteiras atuais do Sistema Endocanabinoide (SEC), com foco na dor feminina e no trato reprodutivo. Ao longo da aula, alternou dados, mecanismos e prudência clínica — e apresentou um relato pessoal que ajuda a entender o impacto terapêutico na vida real.
Voz em primeira pessoa
O relato pessoal da Dra. Beatriz marcou a aula. “Em um mês após começar a tomar Cannabis eu tive minha primeira menstruação sem cólica. Eu chorei de emoção. Foi um divisor de águas”, disse, ao narrar a resposta ao canabidiol. Na gestação, suspendeu o uso por precaução e retomou após a amamentação, com melhora de sono e humor.
“Cannabis não é molécula milagrosa. Funciona melhor quando o terreno está preparado: sono, alimentação, exercício e terapia”, acrescentou.
História e evidências em construção
A narrativa histórica começa há cerca de 6 mil anos, com menções na farmacopeia chinesa a usos anti-inflamatórios e analgésicos. No Egito, preparações em supositório eram empregadas para aliviar dores pélvicas. Entre os séculos VI e XVI, surgem referências antiepilépticas.
No século XIX, o médico da rainha Vitória, prescreveu Cannabis para cólicas e enxaquecas. A Europa e os EUA acumularam mais de 100 publicações sobre valor terapêutico, e a substância entrou em farmacopeias. O século XX, porém, trouxe o proibicionismo, guiado por fatores econômicos, sociopolíticos e preconceitos.
As décadas de 1960 a 1990 marcaram a virada científica: isolamento de THC e CBD, descoberta dos receptores CB1/CB2, identificação dos endocanabinoides anandamida e 2-AG — e a consolidação do SEC.
Um “grande disjuntor” fisiológico
O SEC foi apresentado como um sistema onipresente, que atua na homeostase e se distribui do cérebro ao útero. “Funciona como um disjuntor: quando há excesso de excitação, ele ‘desliga’ o que está em excesso”, disse a médica.
O CB1 predomina no sistema nervoso central, explicando tanto o potencial analgésico quanto os efeitos psicoativos do THC. O CB2 aparece em células imunes e tecidos periféricos, associado à redução de inflamação. O SEC ainda conversa com alvos como TRPV1 e receptores opioides, peça-chave para entender a fisiopatologia da dor.
Dor feminina: complexa, mista, crônica
A Dra. Beatriz retomou que na endometriose, a dor costuma ser mista e tende à cronificação com alterações centrais.
“A dor é uma experiência, não apenas uma lesão. É por isso que a emoção e a dor caminham juntas”, pontuou. A consequência prática é um tratamento multimodal, que combina fármacos, medidas não farmacológicas e, em casos selecionados, canabinoides.
Limites das terapias convencionais
Há barreiras frequentes na titulação de fármacos de primeira e segunda linha, seja por efeitos adversos seja por resposta insuficiente. A pregabalina, por exemplo, tem evidência em 600–900 mg/dia, com sonolência e ganho de peso. A duloxetina pode agravar constipação em quem já tem alteração do hábito intestinal.
Para a médica, é nesse cenário que o SEC, presente ao longo de toda a via dolorosa, torna-se um alvo promissor para modular nocicepção, vias descendentes e cascatas inflamatórias.
O território sensível da reprodução
O trato reprodutivo feminino tem alta densidade de componentes do SEC. Em fases do ciclo e da gestação, a anandamida pode alcançar até seis vezes a concentração observada no cérebro.“Quanto mais estudo a parte feminina, mais cautelosa fico para prescrever”, disse. A mensagem é de prudência com tentantes, gestantes e lactantes.
THC e CBD: diferenças que importam
Outra questão levantada pelos participantes foi em relação ao vício. A médica foi clara: CBD não vicia e atua como modulador alostérico, elevando indiretamente a anandamida, com efeitos ansiolíticos (5-HT1A), neuroprotetores e anti-inflamatórios. Exige sim uma atenção ao fígado.
Já o THC liga-se diretamente a CB1/CB2, com maior potência analgésica e anti-inflamatória, porém efeitos psicoativos e potencial de dependência mais marcados no uso fumado. Em preparações farmacêuticas orais e com dose controlada, o risco é menor. Contraindicações: psicose, arritmias descompensadas e cautela redobrada em tentantes.
Endometriose, dispareunia e menopausa
Segundo a médica, na endometriose, estudos mostram menor expressão de CB1 no endométrio; antagonizar o receptor aumenta a dor. Canabinoides podem atuar no componente inflamatório e neuropático e modular proliferação/apoptose.
Na dispareunia, entram antinocicepção, vasodilatação e relaxamento muscular. A médica recomenda monitorar pressão (hipotensão é possível) e interações. Na menopausa, o efeito é mais consistente em sono, humor e dor.
Como prescrever com segurança?
A Dra. Beatriz defende começar por produtos com qualidade assegurada. “Na RDC 327 (farmácia), a Anvisa já avaliou. Em importados (RDC 660), há opções excelentes e mais acessíveis, mas o COA precisa ser lido com rigor: canabinoides, contaminantes, laboratório independente e validade.”
Além disso, a rotina de segurança inclui termo de consentimento, educação do paciente e acompanhamento de enzimas hepáticas. Em elevações leves, ela reduz a dose e reavalia.
Perguntas que importam
Sobre indicação em endometriose, a resposta é objetiva: “Na dor, ainda na refratariedade. Em perfis neuropáticos, posso propor cedo — com educação, consentimento e planejamento quando há desejo reprodutivo”.
Quanto a dependência, foi taxativa: “O canabidiol não vicia. O THC pode, sobretudo fumado e sem controle de dose. Em uso médico oral e monitorado, o risco é muito menor.”
Educação médica: a ponte entre ciência e prática clínica
A aula escancarou um ponto sensível: formação médica. A maior parte das escolas não ensina SEC, embora o sistema esteja implicado em dor, humor, sono e reprodução — temas onipresentes na clínica. O resultado é um descompasso entre a experiência de pacientes e a segurança de prescritores.
Para a médica, a solução passa por currículos atualizados, inserção do SEC em fisiologia, farmacologia e ginecologia, capacitação interdisciplinar (dor, saúde mental, obstetrícia), desenvolvimento de protocolos e ensino de boas práticas: leitura de COA, farmacovigilância hepática, consentimento, titulação, interações e redução de danos.
“Precisamos de mais estudos padronizados e de médicos bem formados para transformar casos individuais em cuidado seguro, reprodutível e equitativo”, sintetiza.
“Cannabis medicinal pode transformar vidas”
A mensagem central é de equilíbrio. A Cannabis não substitui o tratamento integral nem as linhas consagradas, mas amplia sim as opções em dor crônica feminina quando há racionalidade, qualidade de produto, titulação cuidadosa e monitorização.