A cultura do “segue o jogo” não aceita pausa, não respeita limites, não tolera vulnerabilidade. Basta sentir e já vem a ordem: cale isso. Analgésico, antidepressivo, tarja preta, qualquer coisa que funcione rápido. Ninguém quer compreender a dor, quer silenciá-la.
Mas a pergunta que não cala é outra: por que estamos sentindo tanto?
E mais importante ainda: a quem interessa que essa dor nunca se resolva? A verdade é que somos cúmplices e, mesmo sem perceber, ignoramos o que nos adoece no dia a dia: o sono detonado, a alimentação precária, o excesso de tela. Quando o corpo grita, em vez de escutar, damos mais uma dose. A culpa não é só individual, é cultural.
Enquanto aceitarmos a ideia de que viver bem é não sentir nada, seguiremos alimentando um modelo que lucra com a dor crônica e patologiza qualquer tentativa de pausa
Esse modelo não é novidade. A indústria farmacêutica prosperou exatamente nesse cenário. O maior investimento não é para resolver a dor, mas sim para gerenciá-la. Cria novas fórmulas com nomes diferentes, mas com a mesma lógica de funcionamento. A dor não é combatida, é mantida sob controle. O objetivo nunca foi curar, foi fidelizar.
Do ponto de vista do mercado, curar demais é um problema. Um paciente que melhora, que sai da medicação, que reorganiza a vida, não rende. Não renova receita. Não consome mensalmente. O que se quer é adesão estável, consumo previsível, recorrência. Por isso, não faz sentido para esse modelo investir em soluções que rompam com o ciclo. Faz mais sentido investir em manutenção, em tecnologias que prolonguem o uso, não que libertem o paciente.
E, nesse ponto, é preciso dizer com clareza: eles não estão errados, estão apenas fazendo o que sempre fizeram. Uma indústria existe para gerar lucro. Se o paciente crônico é a garantia do retorno financeiro, o foco da pesquisa será mantê-lo funcional o bastante para continuar comprando, mas nunca livre o suficiente para se desligar. A acessibilidade, a qualidade de vida, o custo-benefício, tudo isso é secundário. O que importa é a continuidade do fluxo. O problema real é que nós, como sociedade, aceitamos essa lógica.
É nesse terreno que a Cannabis medicinal se torna um corpo estranho.
Cannabis não se limita a calar o sintoma, modula um sistema inteiro
Ao atuar no SEC (sistema endocanabinoide), regula dor, sono, humor, inflamação, memória e impulsividade. Não é um tratamento milagroso, mas um modulador do corpo. Isso gera algo que o modelo atual não tolera: autonomia. O paciente começa a melhorar de verdade. Dorme melhor, sente menos dor, depende de menos medicação. Quando isso acontece, sai do radar da indústria da dor e ameaça o império da polifarmácia.
Mas o capitalismo não dorme, ele se adapta. A mesma lógica que transformou o sofrimento em assinatura mensal agora tenta capturar a Cannabis medicinal. Vemos um mercado disfarçado de inovação, mas que repete a velha fórmula: produtos caríssimos, frequentemente com concentrações baixas de Canabidiol, embalados como se fossem descobertas revolucionárias.
Há diversas formulações com CBD isolado, desprezando o efeito comitiva (a combinação de todas as substâncias presentes na planta irá potencializar o efeito terapêutico), e assim formando uma medicação que necessita de doses elevadas para ter resultados satisfatórios.
Para sustentar esse cenário, surgem estudos financiados pelas próprias empresas, não para avançar a ciência, mas para validar o portfólio. O alvo preferencial? O médico desinformado, capturado não pela farmacologia, mas pelo material de divulgação. Nesse contexto, o THC passa a ser marginalizado, não por risco real, mas por estratégia comercial. Não porque faz mal, mas porque ameaça uma das maiores máquinas de receita da indústria, a dor crônica.
O THC é muito mais eficaz para a dor do que o CBD
Não vejo nenhuma coincidência no representante de farmácia que me mostra medicações e, primeiro, oferece o CBD isolado, argumentando que ele é melhor por oferecer “SEGURANÇA”, já que não tem THC. Como um médico que começa a se interessar por esse tratamento vai querer se aprofundar no sistema endocanabinoide se todo mês um representante reforça esse preconceito? Também não vejo coincidência que em congressos nunca vi propaganda ou patrocínio de uma dessas grandes empresas farmacêuticas. Questiono: seria porque não vale a pena pagar para divulgar um produto que não tem competitividade aos olhos de profissionais que são minimamente entendidos? Ou será porque não é viável investir em eventos que instruem e educam os médicos sobre um assunto que eles tentam distorcer e omitir? Fica o questionamento.
O que vivemos hoje é uma guerra fria farmacêutica. Não se trata de ciência contra ciência, e sim de interesses contra necessidades. De um lado, corporações que investem pesado em marketing, lançam produtos com pouca eficiência e vendem promessas a preços abusivos. Financiando seus próprios estudos, moldam o discurso técnico para validar o que mais rentabiliza, e não necessariamente o que mais funciona.
Do outro lado, empresas que escolhem outro caminho: investem em engenharia de dose, sinergia entre fitocanabinoides, custos condizentes com o mercado sério
Junto a elas, associações sérias, que continuam sendo uma das poucas pontes reais entre tratamento digno e acessível. O paciente, preso nesse duelo, segue esperando o que de fato importa: resultado, clareza e respeito.
No fim, quem perde é sempre o mesmo: o paciente, privado de iniciar ou manter o tratamento devido ao custo, e o médico, que tenta tratar com ferramentas distorcidas por marketing e desinformação. A indústria segue ditando o ritmo, agora travestida de inovação, mas repetindo o mesmo roteiro: manter o paciente funcional, mas jamais livre.
A Cannabis medicinal, quando bem conduzida, rompe essa lógica
Mas para que ela seja, de fato, uma virada de chave, e não apenas mais um produto refém do sistema, é preciso mais do que bons compostos: é preciso consciência. Consciência clínica, prescritiva, social. Porque a verdadeira ameaça à indústria da dor crônica não é o canabinoide em si, é o paciente que melhora e não volta.
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